Guaíra Flor
Da equipe do Correio
Paulo de Araújo |
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Liane Collares, 38 anos, tem síndrome de
Down. Nadadora concentrada, ganhou duas medalhas de ouro nas
Olimpíadas Especiais, competindo com atletas excepcionais de
todo o mundo
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Nascer com alguma deficiência, na
França, agora é caso de Justiça. Uma corte parisiense determinou que
crianças deficientes podem processar os médicos que fizeram o pré-natal
e parto de suas mães. O motivo é, no mínimo, polêmico: na opinião da
Justiça francesa, a desinformação sobre a saúde do feto é grave e o
médico pode, sim, ser condenado por não ter dado à mãe a opção de ter ou
tirar a a criança.
No dia 28 de novembro, três juízes condenaram um médico a pagar
indenização milionária à mãe de um menino com síndrome de Down. Segundo
eles, o doutor foi negligente por não avisá-la que o filho nasceria com
a doença. O bebê, identificado apenas como Lionel, nasceu em 1995. A mãe
argumenta que teria abortado se soubesse do problema. Para a criança,
era melhor não ter nascido.
A decisão provocou polêmica. Especialistas e religiosos de todo o
mundo concordam que os pais de Lionel recebam ajuda financeira. Afinal,
é caro cuidar de pessoas com Down. Elas precisam de tratamento
fonoaudiológico, fisioterapia, aulas extras e — em mais de 50% dos casos
— de cirurgia cardíaca. No entanto, a maioria da comunidade científica
está indignada com a alegação da mãe à Justiça: está ofendida por não
ter sabido em tempo da doença do filho e, por isso, ter perdido a chance
de decidir por tê-lo ou não.
Para a especialista em bioética da Universidade de Brasília, é
imprescindível o direito à informação antes de qualquer decisão. ‘‘Quem
não quer um bebê com problemas deve fazer todos os exames para
identificar isso enquanto está grávida’’, afirma. O argumento da mãe de
Lionel é exatamente este. Ela fez os exames e, até onde foi informada, o
filho tinha a saúde perfeita. Se soubesse da síndrome em tempo, poderia
ter abortado. Na França, a legislação permite isso.
Há quem acuse a mãe de Lionel de preconceituosa. ‘‘Quem tem síndrome
de Down não é inútil’’, afirma Leonice Moura, coordenadora educacional
da Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). ‘‘Não há porque
abortá-lo. O Down requer cuidados especiais, mas basta dar atendimento
especializado que ele se desenvolve física e mentalmente.’’
Vitoriosa
A carinhosa Liane Collares, 38 anos, é um bom exemplo. Nadadora
concentrada, ganhou duas medalhas de ouro nas Olimpíadas Especiais,
competindo com atletas excepcionais de todo o mundo. Portadora da
síndrome de Down, foi criada como qualquer criança. Freqüentou escolas
regulares e concluiu a 8ªsérie junto com alunos ditos ‘‘normais’’. ‘‘A
convivência com todo tipo de amigos ajudou muito em seu
desenvolvimento’’, conta o pai de Liane, o bancário Edson Collares. ‘‘O
Down tem inteligência mediana. O que diferencia ele dos demais alunos é
a lentidão para aprender.’’
Assim como os outros que têm o mesmo problema, Liane tem a língua
maior e mais grossa que o normal. Apesar disso, fala português com
perfeição. E é tão segura de si que dá palestras pelo Brasil contando
sua experiência de vida. Como se não bastasse, trabalha com carteira
assinada em uma creche para crianças carentes. E ainda arruma tempo para
escrever a autobiografia. ‘‘Tudo que ganho, coloco na poupança para
comprar um apartamento para minha mãe e um barco para meu pai.’’
Para a sociedade francesa, no entanto, não importa até onde um
deficiente pode chegar. Ele ainda é visto como um fardo para as famílias
e sociedade. ‘‘Algumas pessoas são felizes apesar das deficiências,
outras não’’, argumenta Diaulas Ribeiro, promotor de saúde da Promotoria
de Defesa dos Usuários de Serviços de Saúde do DF (Pró-Vida/DF). ‘‘Cada
família precisa ter o direito de optar se quer ou não ter um filho, seja
ele sadio ou normal.’’
Exemplo
Para Diaulas, a mãe de Lionel tinha o direito de ser informada sobre as
condições do feto que carregava. Só assim, poderia tomar uma decisão
consciente. ‘‘Nascer não pode ser uma obrigação’’, defende o promotor.
‘‘Este caso deve servir de exemplo para todos os países onde o aborto
não é permitido. Ele prova que nem todo mundo gostaria de ter nascido.’’
Hoje, 74 nações proíbem a interrupção de uma gravidez indesejada (veja
quadro). Mas não oferecem às mulheres nada em troca. Quando dão à luz,
elas não contam com nenhuma ajuda do governo. Nem mesmo com bons
sistemas públicos de saúde e educação para si ou para o filho. E têm de
arcar sozinha com todas as obrigações de uma maternidade que lhe foi
imposta. E, nos casos das crianças com deficiência, a falta de
assistência especializada acaba com qualquer chance dela se desenvolver.
Há quem diga que não há desculpa. ‘‘O contexto sócio-econômico não é
motivo para matar uma criança’’, defende Dom Aluísio Leal Pena,
responsável pela pastoral da família da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB). ‘‘A mulher é dona do próprio corpo, mas não do feto
que está sendo gerado. Só Deus poderia tirar-lhe o dom da vida.’’
O caso Lionel não é o primeiro a levantar discussões sobre o aborto e
o preconceito contra deficientes. No ano passado, a corte francesa
determinou que Nicolas Perruche — nascido com sérias deficiências
físicas e mentais — recebesse uma indenização do obstetra de sua mãe. O
médico não avisou a paciente dos perigos da rubéola durante a gravidez.
Atualmente, 90% dos problemas congênitos podem ser descobertos em exames
de pré-natal. Para os franceses, um aviso no tempo certo para optar por
não nascer.
FONTE: CORREIO BRAZILIENSE 30/12/2001 |