Rompendo os Limites

fonte: Revista Veja (29/03/2000)

Com novos tratamentos e menos preconceito,
portadores da síndrome de Down vivem melhor
 

   

Susanna Bernardi Roselli é uma garotinha simpática e esperta, extremamente curiosa e carinhosa. Aos 6 anos, está na pré-escola. Como os quinze colegas de classe, adora desenhar, encanta-se com as histórias contadas pela professora e já identifica as primeiras letras do alfabeto. Desenvolta, vira-se muito bem sozinha. As habilidades de Susanna impressionam, mas passariam despercebidas se ela fosse como os coleguinhas da turma. Não é. Ela é vítima de uma anomalia congênita de origem genética, a síndrome de Down, que acarreta retardamento mental. Apesar disso, Susanna nunca freqüentou uma escola especial. Quando tinha 2 anos, sua mãe, a arquiteta Carla Roselli, optou por educá-la em uma escola para crianças normais. "Nos primeiros dias, as outras crianças ficavam espantadas com a autonomia de minha filha", diz Carla. "Hoje a tratam como uma coleguinha como as outras." Atualmente, além da escola, das sessões de terapia e fonoaudiologia, a menina freqüenta aulas de dança contemporânea.

A pequena Susanna é representante de uma geração de portadores da síndrome que se prepara para ter uma vida social ativa com doses relativamente amplas de autonomia e liberdade. Há dez anos, estimava-se que apenas dois em cada dez portadores da deficiência freqüentassem a escola. Hoje, o índice chega a 80%. Quase a metade está matriculada em colégios normais. "Na escola regular, que reproduz o ambiente da rua, a criança aprende a exercitar suas habilidades e sua cidadania", diz a jornalista Cláudia Werneck, autora de sete livros sobre a síndrome de Down. Um estudo recente e pioneiro realizado pela Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down em parceria com o Ministério da Educação, que apurou a mudança para melhor na qualidade de vida dos deficientes, concluiu que de cada dez pais nove acreditam que o filho pode ter um dia-a-dia bem próximo ao de uma pessoa normal. "Conseguiu-se desmitificar a imagem de incapacidade que sempre esteve associada ao Down", afirma Maria Madalena Mendonça, diretora da Federação. "Sabe-se agora que os portadores podem ser, na maioria dos aspectos, pessoas como quaisquer outras."

Os deficientes não apenas estão sendo incentivados a freqüentar a escola até o colegial sempre recebendo atenção especial dos professores, evidentemente como também sendo preparados para o mercado de trabalho. As oficinas profissionalizantes da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, de São Paulo, encaminharam mais de 160 portadores da síndrome de Down para empregos e estágios remunerados no ano passado. Os níveis de retardamento mental e dificuldade de aprendizado sofrem variação individual. Em muitos casos, surpreende a capacidade de assimilar informações. O paulista Artur Pinto da Silva, de 19 anos, tem uma rotina para lá de agitada. Ele divide seu tempo entre a escola, as aulas de flauta doce, as partidas de tênis e a ginástica com personal trainer. Obviamente, como portador de deficiência mental, Artur jamais chegará a ser um grande concertista. Mas não é isso o que se espera dele. "Eu quero, eu posso, eu faço, eu gosto", repete, animado.

A vida dos portadores também está mais leve graças aos avanços da medicina. Complicações de saúde que, em menor ou maior grau, costumam acompanhar a deficiência já podem ser detectadas até antes do nascimento e ser tratadas precocemente. Um dos problemas mais graves é a insuficiência cardíaca, que atinge 50% dos portadores. Com o aperfeiçoamento das técnicas e de instrumentos cirúrgicos, hoje uma criança nos primeiros anos de vida pode passar por uma cirurgia no coração sem grandes riscos. Outra doença associada é o hipotireoidismo, um distúrbio glandular causador de fadiga crônica e excesso de peso. Detectado cedo, pode ser controlado. Importante também é a estimulação precoce, feita desde o berço, que ajuda essas crianças a atingir um nível intelectual impensável há poucas décadas. "Até os 25 anos, o portador da síndrome tem uma capacidade de aprendizado próxima da normalidade", diz o pediatra e geneticista Zan Mustacchi, pesquisador da deficiência há mais de vinte anos. Com todas essas novidades, os deficientes não vivem apenas melhor, mas também estão vivendo por mais tempo. A expectativa de vida saltou dos 10 anos, na década de 20, para 60, bem próxima à da população brasileira em geral (veja quadro neste parágrafo).

A cada ano, nascem 150.000 crianças com algum tipo de anomalia no Brasil. Cerca de 8.000 bebês deixam a maternidade com o diagnóstico de Down. O país possui hoje 110.000 portadores da síndrome. Um em cada quatro tem entre 10 e 19 anos e pode ser facilmente identificado pelas características típicas do defeito genético: o rosto é arredondado, as bochechas salientes, as mãos pequenas e os olhos amendoados. Em geral, começam a falar aos 4 anos, dois a mais que uma criança normal. Dessa forma, aprendem a ler e a escrever em ritmo mais lento. Também apresentam dificuldade no desenvolvimento físico. As articulações são mais frouxas, o que compromete o equilíbrio, e os músculos têm menos tonicidade, o que implica menos força. Tendem ainda a apresentar mais cedo os sintomas do envelhecimento. É um quadro de complicações sérias. Mas, como se sabe agora, não desesperadoras.

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